Camila a Intensa

Camila, a intensa. 

Camila dizia que amava demais. O que não sabia, de fato, era que o que parecia amor, na verdade era parte dos seus sintomas.  Quando procurou tratamento estava com 26 anos e tinha tentado suicídio, pois não suportou o término do namoro com João. Desde o começo, o relacionamento era abusivo, repleto de xingamentos e agressões físicas. Amor e compreensão, era o que faltava na relação. Quando o conheceu, sabia que tinha uma outra namorada, mas mesmo assim, concordou em participar deste triângulo afetivo. Sempre recebeu migalhas e naquele novo affair não foi diferente. João não dava o amor que ela considerava suficiente para reparar a falta de carinho genuíno da sua infância. Já tinha passado por diversas relações disfuncionais, com pessoas  que  a maltratavam e  humilhavam, no entanto, apesar do sofrimento, se prendia ao parceiro, que de amoroso não tinha nada, pelo simples fato de não suportar ser “descartada”. O desespero diante do abandono era constante e recorrente. Sempre foi assim: em todas as relações o término era trágico.   

A fama da moça era de ser “muito intensa”, tanto com amigos quanto com seus pares românticos. O ciúme estava presente sempre e sua impulsividade a levava a cometer loucuras. Uma vez, ao perceber que seu namorado estava conversando com uma colega na Universidade, riscou o carro dela, sem pensar nas conseqüências: a câmera interna da instituição filmou o ato e ela teve que pagar o prejuízo.  Em outra situação, com outro par afetivo, colocou fogo nas roupas do rapaz quando descobriu que ele estava a traindo com uma amiga do trabalho.  Estas foram algumas cenas que protagonizou por não conseguir controlar a sua raiva intensa.  Com os amigos também não era muito diferente. Quando elegia um para “amar” não admitia dividi-lo com mais ninguém. A prioridade sempre deveria ser ela e quando se sentia preterida por algum motivo, arrumava confusão e, muitas vezes, perdia a amizade. 

Muitas vezes Camila não sabia ao certo quem era. Tinha perturbação da identidade. Se achava bonita e feia, gorda e magra, inteligente e burra, tudo era confuso em relação ao seu ser.  Sua idéia de pessoa não foi bem construída ao longo do seu desenvolvimento e por isto era frágil, raivosa, impulsiva, ciumenta e triste. A sensação de vazio era imensa e por meses ficava em quadros depressivos: não conseguia sair da cama e sua vida profissional e acadêmica tinha sido jogada no ralo. Nada mais fazia sentido. Dentro dela havia um vazio imenso.  

Mas, por que tudo isto acontecia? Quando era criança passou por muitas dificuldades, que incluíam abusos físicos, sexuais e verbais. Seus pais se separaram quando tinha sete anos, o que causou uma onda de acontecimentos sombrios em sua vida. A mãe não deu atenção adequada, pois estava preocupada com a sua própria vida e com a próxima relação que teria. Saia quase todas as noites para procurar um parceiro que suprisse sua carência de afeto e sexo. Muitas vezes, levava os pretendentes para casa e não se importava se eles também usassem a filha para obtenção de prazer. O pai, que até então tinha sido zeloso e atencioso, não mais aparecia com freqüência. Eventualmente marcava presença, nas datas festivas deixando-a sempre na expectativa de um bom encontro. 

Foi neste contexto adverso que Camila cresceu. Seus vínculos com as figuras parentais sempre foram instáveis, apavorantes e inseguros. Não existia ali carinho, empatia, proximidade, apóio emocional, orientação e nem proteção. Abusos verbais e físicos também estavam presentes, pois a mãe, sempre sem paciência, vivia a criticando. Surras homéricas também aconteciam todas as vezes que achava que a menina não se comportava adequadamente. O pai, quando aparecia, a tratava como um bebê, não percebia o quanto a menina sofria, pois na verdade, sua preocupação e atenção não se concentravam nela. Ela se subjugava ao pai na tentativa de ser amada, não demonstrando o que sentia de verdade. Nem raiva, nem dor, nem irritação, nem nada. Sentia que não tinha valor, que era mau, inútil e suja. 

Na adolescência começou a fazer cortes superficiais nos braços pois entendia que esta seria uma forma de materializar a dor emocional que a assolava.  Tornou-se agressiva para se “defender” da vida e desenvolveu anorexia.  Foi com esta história que Camila chegou ao meu consultório. Todos os seus sintomas tinham um sentido e o trabalho psicoterapêutico consistia em fazer uma reparação dos danos causados em sua personalidade. Tarefa árdua e, ao mesmo tempo, fascinante, pois a Psicologia e a Neurociência, atualmente, nos oferecem instrumentos para a compreensão da origem dos transtornos mentais. Eles não surgem do nada, como uma gripe que se “pega” no ar. Há uma construção histórica e a nossa função é a reconstrução de uma pessoalidade corrompida pelas faltas e excessos de uma parentalidade tóxica. 

Todos os sintomas da Camila apontavam para um Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) e o nosso trabalho começou com uma atitude empática e de validação dos sentimentos infantis. Seguimos contornando sua estrutura de personalidade de forma mais estável, separando os “lixos” subjetivos dela e dos outros. Depois continuamos com técnicas da Psicologia Positiva para delimitar o que de bom havia nela, quem de fato a Camila era. Seus talentos, inteligências e forças de caráter foram ressaltados para que a moça pudesse se reconhecer como uma pessoa de valor, que não precisava mais repetir sua condição infantil de abusos e privações, levando-a a entender que relações amorosas se constroem com atenção, respeito e confiança mútua. Entendeu que não precisava mais repetir as condições adversas que viveu na infância.  Atualmente ela tem 28 anos, está terminando a faculdade de direito, pretende ser juíza e não pensa mais em se matar. Seus projetos de vida têm sentido e isto faz com ela se levante todos os dias, para desfrutar o que a vida tem de melhor. 

Se você conhece alguém com características parecidas, oriente para procurar um profissional da saúde mental. Psicólogos e psiquiatras podem ajudar na condução para uma vida mais satisfatória, com mais prazer e sentido.

Beijos e até a próxima!

Adriana F. Santiago

CRP: 05-20345

Psicóloga com 30 anos de prática clínica e pesquisa em comportamento e emoção humana. Atualmente atua como Diretora do Núcleo de Aplicação e Pesquisa da Psicologia Positiva (NUAPP), psicóloga, supervisora de projetos e professora de psicologia clínica, Psicologia Positiva e Terapia do Esquema. 

Bibliografia

Young, J. Terapia Cognitiva para Transtornos de Personalidade. Uma abordagem focada em esquemas. Porto Alegre, Artmed, 2003.

Young, Jeffrey. Terapia do esquema: guia de técnicas cognitivo-comportamentais inovadoras. Porto Alegre: Artmed, 2008. 

DSM-V MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS – 5ª edição – American Psychiatric Association – 2014 – Artmed

   

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